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segunda-feira, 5 de julho de 2010

Células Maternas em nossos corpos

Apesar de ser um campo de pesquisa novo e não muito na moda, os dados são surpreendentes e prometem influenciar interpretações biológicas e filosóficas sobre individualidade e relação mãe-filho. Estudos recentes indicam que a transferência celular entre o feto e a mãe durante a gestação é um fenômeno comum. E que a troca de células persiste nos dois indivíduos anos após o nascimento. Essa troca também pode acontecer entre gêmeos no útero ou – ainda não confirmado –, durante um aborto espontâneo.
Microquimerismo é o nome dado ao fenômeno biológico referente a uma pequena população de células ou DNA presente em um indivíduo mas derivada de um outro organismo geneticamente distinto. Eventos naturais de microquimerismo estão sendo conectados a doenças autoimunes – como o caso de escleroderma e lúpus. Além disso, a presença de microquimerismo em células do coração de indivíduos infartados sugere que o fenômeno possa contribuir com o reparo natural de certos tecidos do corpo.
Pesquisas nessa área começaram a partir de estudos de rejeição de tecidos transplantados. Era curioso observar a falta de rejeição de órgãos entre indivíduos não compatíveis. Apesar de raros, esses casos despertaram a curiosidade de pesquisadores que passaram a procurar formas de explicar a integração do tecido transplantado na ausência de uma reação imunológica.
Utilizando-se de sondas especificas para o cromossomo Y (aquele presente só em homens), foi revelado que diversos tecidos de mulheres que haviam passado por um transplante continham células masculinas. A observação mais impressionante foi que essas células masculinas não se limitavam apenas ao tecido transplantado, mas podiam ser encontradas espalhadas por diversos órgãos da mulher.
Até aí, a explicação mais óbvia seria que células transplantadas teriam migrado e se inserido em outros tecidos do corpo da mulher receptora. A explicação parecia verossímil até que se descobriu que o fenômeno também ocorria em algumas mulheres que nunca haviam recebido transplante algum. De onde estariam vindo as células masculinas no corpo dessas mulheres?
A análise do histórico médico revelou uma correlação extremamente curiosa: apenas as mulheres que tiveram filhos homens antes do teste apresentaram microquimerismo masculino. Essa correlação levou à interpretação de que existe uma troca natural entre células do feto e maternas durante a gravidez. Isso também explicava a falta de rejeição em algumas mulheres, pois o microquimerismo celular era mais frequente e havia estimulado o sistema imune do transplantado anteriormente.
Essa quebra de dogma (de que somos feitos unicamente a partir de nossas células embrionárias) estimulou estudos em doenças autoimunes. Em diversos trabalhos realizados, níveis de DNA masculino estavam presentes em quantidades significativamente maiores em tecidos de mulheres com esclerose sistêmica quando comparados com mulheres sadias. Todas as mulheres com esclerose sistêmica haviam tido filhos homens. Esses dados foram reproduzidos em modelos animais, utilizando-se camundongos fêmeas.
Os estudos não são completamente conclusivos ainda. Pode-se argumentar, por exemplo, que o nível de microquimerismo aumentou em função da própria doença. Segundo essa visão, as células masculinas estariam proliferando como consequência da doença, e não como causa.
Em outra doença autoimune, o lúpus em neonatos, a interpretação é semelhante. Nessa doença, o neonato com baixo sistema imunológico estaria mais propenso a receber células maternas, aumentando o microquimerismo. Estudos subsequentes nesses pacientes mostraram que as células maternas persistem na pessoa adulta, especializando-se em diversos tecidos e tornando-se parte integral do corpo do indivíduo.
Em adição aos trilhões de células derivadas do óvulo fertilizado que fomos um dia, cada um de nós possui células adquiridas de um outro organismo, geneticamente distinto. No útero, as recebemos através de uma infusão de nossas mães. Mulheres grávidas também coletam uma amostra derivada do embrião em desenvolvimento. Que essas células cruzem a placenta não é novidade. Afinal de contas, o tecido que conecta a mãe ao feto não é uma barreira impenetrável, mas uma fronteira seletiva, permitindo a passagem de nutrientes e fatores necessários ao desenvolvimento do feto. O que é novidade é que as células trocadas persistem no organismo receptor, residindo em diversos órgãos.
Essas células têm a capacidade de contribuir para o reparo de tecidos danificados ou mesmo ser alvo de doenças autoimunes. Portanto, esse microquimerismo parece contribuir tanto para a saúde quanto para a doença, dependendo da situação. Essa área de estudo é relativamente recente em biologia e, como toda disciplina atípica, requer um estágio de estabelecimento até que a massa de cientistas preste atenção e reconheça o fenômeno como relevante.
Intuitivamente, sinto-me feliz sabendo que carrego um pouco de minha mãe comigo. Acho que o mecanismo pode ser visto, primeiramente, como uma forma adicional de proteção materna, mas que nos acompanha pela vida inteira. De qualquer forma, me faz pensar: se carrego um pouco de células maternas protetoras na maioria de meus órgãos, qual será então o impacto de neurônios da minha mãe no meu cérebro?
texto retirado do site globo.com

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